O elogio da sombra ou a plenitude do amor

O elogio da sombra ou a plenitude do amor

Irmã Sandra Bartolomeu*

 

O capítulo sétimo da recente Carta Apostólica do Papa Francisco Com coração de pai, referente a S. José, intitula-se «Pai na sombra». A ideia de sombra traz-me de imediato à memória o trabalho plástico da artista portuguesa Lourdes Castro, no qual os objetos do quotidiano ou os amigos próximos são retratados por meio de sombras. Lembra-me também a oração-poema de uma antiga prioresa do Carmelo de Coimbra, que começa precisamente assim:

«Jesus, concede-me passar como uma sombra passa
vestida de silêncio sem nada dar por mim,
inteiramente Tua, ao teu querer um sim
concede-me passar, deixando a tua graça.»

A sombra é um vestígio mínimo, o rasto visível de um corpo. Ela torna presente algo ou alguém ausente aos nossos olhos, como uma memória. A sombra não se impõe; é extremamente discreta e silenciosa. Tem um carácter incorpóreo, imaterial; sinaliza um corpo, mas não tem corpo em si mesma. Nas obras de Lourdes Castro, há, por meio da sombra, uma desmaterialização dos corpos retratados. A sombra lembra-nos a efemeridade das coisas, o seu carácter passageiro e temporal. O que é agora visível, com uma forma determinada, a seu tempo desvanece-se, como se desvanece a própria sombra ao mudar da luz. Há na sombra, por isso, uma evocação à morte. Todas as coisas que vêm à luz regressam à sombra e ao silêncio de onde vieram, ao lado escondido da vida, até ao dia em tudo seja claro.

‘Ficar na sombra’ significa comumente, ficar oculto, não ser reconhecido. No seio de uma cultura mediática, como é aquela em que nos movemos, parece só existir o que brilha, o que é visível e audível e, por isso, conhecido. Na sociedade da informação e do marketing, todos competem, ainda que seja por ‘15 minutos de fama’, de palco, de luzes, para obter atenção e lucro. Neste sentido, ficar na sombra e no silêncio equivale mesmo a não existir, a assumir não ser reconhecido, a sujeitar-se à morte. E tudo se vende, até a própria identidade e dignidade, para escapar ao aniquilamento da morte.

O que há de virtuoso, então, em ficar na sombra? Como é que a graça pode passar através da sombra? Como é que a sombra pode ser lugar de paternidade, de cuidado, de amor e de vida?

Explica o Papa, referindo-se a S. José, pai na sombra:

«Ser pai significa introduzir o filho na experiência da vida, da realidade. Não segurá-lo, prendê-lo, subjugá-lo, mas torná-lo capaz de opções, de liberdade, de partir. Talvez seja por isso que a tradição, referindo-se a José, ao lado do apelido de pai colocou também o de «castíssimo». Não se trata de uma indicação meramente afetiva, mas é a síntese de uma atitude que exprime o contrário da posse. A castidade é a liberdade da posse em todos os campos da vida. Um amor só é verdadeiramente tal, quando é casto. O amor que quer possuir, acaba sempre por se tornar perigoso: prende, sufoca, torna infeliz. O próprio Deus amou o homem com amor casto, deixando-o livre inclusive de errar e opor-se a Ele.»

Talvez possamos tomar a opção por ocupar um lugar na sombra como imagem do sacrifício cristão, isto é, imagem do amor maduro e puro, da castidade, como diz o Papa Francisco em relação a S. José. Ficar na sombra é contrário à posse, que oprime e mata o outro. Retirar-se para a sombra equivale a não se impor nem se forçar, não exercer sobre o outro a força persuasora da própria sedução, tornando-o objeto de conquista e sua propriedade, a fim de preencher um vazio. Quem ama, porque deseja o bem e a vida plena do amado, retira-se; prefere a morte de si mesmo, suportar o vazio, do que subjugar o outro. Fica-se na sombra para não fazer sombra ao outro, permitindo ao outro dançar na luz. Deste modo, amar na sombra é imagem do próprio amor de Deus, como o manifestou Cristo: oferece-se em sacrifício ao Pai para a vida e liberdade daqueles que o Pai ama.

Como tudo isto é extremamente difícil e contracorrente num mundo em que o lema é ‘quem não tem ninguém, não é ninguém’, um mundo de amor líquido em que é esperado do outro um serviço à minha própria felicidade. Sinto e experimento nas minhas próprias relações de amizade e de fraternidade que a pretensão de conquistar e de possuir o amor de outros prende-se a um problema de falta, quer de perspetiva, quer de confiança e de fé: falta de confiança no dom que Deus me fez, tornando-me habitação de si mesmo, fonte do amor; falta de fé em não crer suficientemente que há uma comunhão e uma vida, não só possível, mas infinitamente mais profunda, intensa e sólida no silêncio, na intimidade e no que está escondido aos olhos dos outros, na minha interioridade com o próprio Deus; que no vazio que carrego, Deus está, e que em cada momento Ele me sustenta e sustenta o próprio vazio de modo suficiente com a sua providência, com o suave perfume da sua presença e com os dons que me deu; e que a posse não ‘enche as medidas’ de ninguém. Só o amor, o próprio Deus e o seu dinamismo de amar - que é por natureza dom total de si -, para o qual nos criou, realiza e preenche o mais fundo do coração humano. À tentativa de possuir os outros ou as outras, sufocamos nós, sufoca a vida e sufoca o outro. Só na liberdade é que o amor é; e só o amor dá vida. Há mais vida num amor que abre mão, do que no desejo que tenta conquistar para possuir.

Assim aprendeu e ensinou S. João da Cruz: que o amor pleno que nos sacia só tem lugar na total desapropriação de si mesmo. Aí pode habitar o amor, e a partir do amor, é que se possui tudo.

 

São José, que amaste à semelhança do Pai Celeste,
permanecendo escondido, com um extremo respeito pela nossa liberdade, 
rogai por nós.

 

*A irmã Sandra Bartolomeu é Serva de Nossa Senhora de Fátima. Licenciou- se em Pintura- Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e tem o Mestrado em Educação das Artes Visuais. Tem também a Licenciatura e Mestrado em Ciências Religiosas (Ensino de EMRC).
Já realizou alguns trabalhos no âmbito do desenho e ilustração e presentemente trabalha na Pastoral do Santuário de Fátima.
 
Quarta, 1 de Setembro de 2021