A propósito da Eutanásia – breve reflexão de uma médica paliativista

A propósito da Eutanásia – breve reflexão de uma médica paliativista

A propósito da Eutanásia – breve reflexão de uma médica paliativista

Quando na semana passada o filho de um doente com neoplasia do rim extensamente metastizada nos entrou pelo gabinete de consulta a dizer, com tom desesperado, que o pai precisava de eutanásia a nossa equipa entendeu, ao fim de poucos momentos a escutá-lo, que ele nos estava a pedir que aliviássemos o sofrimento de ambos com cuidados ajustados, ou seja, Cuidados Paliativos de qualidade.

Empenhámo-nos a estruturar com os recursos disponíveis e com aqueles que conseguimos disponibilizar a resposta mais rápida que confortasse este doente às portas da morte e o filho que o acompanhava de forma empenhada. Foi possível retirá-lo, no dia seguinte, do sobrelotado e ruidoso serviço de urgência, onde permanecia numa maca por falta de vagas de internamento, e integrá-lo numa Unidade de Cuidados Paliativos onde recebeu os melhores cuidados até à sua morte.

Infelizmente nem sempre se consegue dar aos doentes graves e em fim de vida todo o apoio e cuidados que carecem, pela exiguidade de recursos existentes, não obstante o aumento do número de camas disponibilizadas pelo Serviço Nacional de Saúde nos últimos anos.Os profissionais das Equipas de Cuidados Paliativos deparam-se no quotidiano com tremendas dificuldades para que os doentes acometidos por doenças incuráveis recebam todos os apoios que necessitam pela insuficiência de uma Rede de suporte, ainda sem cobertura nacional, deixando assim inúmeros doentes e familiares esmagados por um sofrimento, que seria possivel suavizar. A escassez de respostas prontas e eficazes no Serviço Nacional de Saúde, determina que doentes incuráveis com a “dor total”, não recebam o alívio que necessitam através de equipas multidisciplinares com formação na abordagem do sofrimento multidimensional; e esse apoio holístico é muito mais do que administrar fármacos para alívio da dor e outros sintomas físicos, pois o sofrimento atinge todas as dimensões do nosso ser.

Nós, que nos dedicamos aos doentes incuráveis, bem sabemos que o sofrimento da pessoa doente tem que ser escutado e acolhido,há que ser e estar próximo pois, se assim não for, a angústia e a solidão empurram para o caos do desespero onde a esperança, a serenidade e a paz não têm lugar. 

Neste momento crucial em que a eutanásia está no foco das atenções, todos nós, sociedade civil e profissionais de saúde, esperamos dos nossos representantes na Assembleia da República decisões ponderadas e estruturantes, que apoiem os cidadãos, quando atingidos por doença grave e incurável (e serão a maioria de nós!) não se limitando a estabelecer uma lei fundamentada no imediatismo, ignorando o sentido do pedido de ajuda de quem sofre.

A voz de quem sofre interpela-nos de uma forma profunda, não podemos e não devemos escudar-nos em posições simplistas que nos diminuem como seres humanos. Numa sociedade organizada que se pretende justa, os mais débeis são protegidos, disponibilizando recursos que a cultura e os avanços e conquistas tecnológicas e civilizacionais têm permitido. As pessoas com doença incurável têm o direito de receber todos os cuidados que a sua situação merece e que a sociedade tarda em assegurar, bem como o devido acesso a esses cuidados, consignado nos Direitos Humanos fundamentais, nomeadamente através de um Sistema Nacional de Saúde suficiente em recursos de Cuidados Paliativos, não excluindo nenhum cidadão que deles careça.

Como médica há cerca de 40 anos a trabalhar em exclusivo no Serviço Nacional de Saúde, e nos últimos anos integrando a Equipa de Cuidados Paliativos do Hospital Garcia de Orta, sou testemunha das múltiplas dificuldades com que se deparam os doentes terminais: físicas, psicoemocionais e sociais - e do esforço, por vezes angustiante, que nós profissionais fazemos não conseguindo chegar a todos os que precisam….

Sabemos que há ainda um longo caminho a percorrer, para que os Cuidados Paliativos sejam universais em Portugal, não vamos desistir e sabemos como fazê-lo – precisamos que os políticos, nossos representantes, se vinculem ao serviço dos cidadãos alavancando o nosso esforço quotidiano com medidas verdadeiras e efectivas de apoio aos doentes graves e suas famílias, não se ficando por nebulosas decisões que apenas visam a execução das pessoas doentes ao abrigo da lei.

Por: Dra. Aurora Tomaz

Quinta, 20 de Fevereiro de 2020