SANTUÁRIO DE CRISTO REI, PONTO DE ENCONTRO COMIGO MESMO

SANTUÁRIO DE CRISTO REI, PONTO DE ENCONTRO COMIGO MESMO

“SANTUÁRIO DE CRISTO REI, PONTO DE ENCONTRO COMIGO MESMO”

Eugénia Abrantes Magalhães*


Tudo o que é d’Ele é teu: o seu espírito, o seu coração, o seu corpo, a sua alma e todas as suas faculdades. (…) Quer que tudo quanto n’Ele existe viva e domine em ti: o seu espírito no teu espírito, o seu coração no teu coração, todas as faculdades da sua alma nas faculdades da tua alma, de modo que se realizem em ti aquelas palavras: Glorificai e trazei a Deus no vosso corpo, e a vida de Jesus se manifeste em vós. (João de Eudes)

Penetrar no espaço santo é ato favorável à experiência do descalçar as sandálias da alma – evocando, aqui, metaforicamente Ex 3, 5. É atitude oportuna de experiência de penetração gravítica no silêncio mais pessoal que cada um de nós guarda como mistério escondido, pronto para ser revelado a um Outro que se apresenta como Coração Misericordioso.

Uma das singularidades do Santuário – que tem no seu centro o Coração de Jesus – é a de arrastar o tudo que somos para o centro do Seu Coração Misericordioso. Outra, é a de ser espaço-avocação a que Deus atrai a nossa alma para falar-lhe com carinho (Os 2, 14). Outra, ainda, é a de ser um dom incessante de renovação de ser; logo, lugar possível de novidade de nós mesmos.

Subir ao Santuário

Parte-se da terra do dia-a-dia e sobe-se ao Santuário porque se quer ver, porque se quer saber, porque se quer conhecer – essência de disponibilidade interior; herança ancestral de ser Povo de Deus. Sobe-se para o encontro com o mistério: o do nosso próprio e o do Outro, a quem o nosso ser reconhece como Cristo. Na verdade, toda a ontologia do encontro reclama o despojamento do fútil, para revelar-se o essencial – essência de intimidades. Realidade esta que torna inevitável o fazer-se a experiência de descalçar as sandálias, arrancando da nossa alma todo o atulho opaco que cobre a sua natureza diáfana. Só em pés descalços somos capazes de sentir a textura do chão que se pisa; a textura do amor de Deus, que permite que os passos da alma sejam firmes no andar e não tropecem. Realidade que incita o fazer-se a experiência do descalçar, desempedrando o entulho com o qual de forma tão ardilosa fomos cobrindo o nosso coração, numa construção astuta de um ego à nossa vã imagem. Só um coração limpo é capaz de adquirir uma nova forma de vida, abrir-se à penetração do Espírito, converter-se em coração de carne e ser à imagem e à semelhança de Deus (Cf. Ex 36, 25-27; Gn 1, 26).

Descoberta de um Santuário interior

Ao transpor o átrio da terra sagrada, nada do que há de mais íntimo em nós deixa de estar escondido. Trespassa-se o momentâneo, o rotineiro, o banal, o supérfluo, adentra-se no interior, no invisível, no inaudível e deixa-se a dilatação da verdade expandir-se no Coração de Jesus. E, de mansinho, a alma começa a transformar-se em coração aberto, sede da unidade de Deus, segregando doces preces, na senda da similitude das palavras de Frei Tomé de Jesus: “a vós todo o meu imperfeito se descubra, e grite, para me aperfeiçoardes.” (1985: 132).

Em terra habitada do Seu Espírito, este entrar é agora um entrar no santuário da alma. Não como quem pisa em terra estrangeira, anónima, ádvena, mas como quem sopeia a casa do Coração amante de Deus, que é a nossa alma, porque Ele aí quis fazer morada sua. Encontro dos encontros, que só o amor é capaz de iniciar e realizar; logo, de conhecer. No campo aberto da Misericórdia Infinita, pedacinho do céu, Ele, fiel e paciente, fala amorosamente ao nosso coração, esteja ele inquieto, sofrido, duvidoso, crente, esperançoso, agradecido ou em louvor. O coração carente sacia-se no Coração Absoluto de Jesus. O coração desejoso de sentido de ser entrega-se no curvar, ajoelhar e beijar a este Deus que há muito tomou o tamanho dos nossos corações. É o ensejo de adentrar no mais fundo de nós mesmos, numa destemida atitude de humildade, para que, através desse movimento de amor, possamos elevar-nos na Sua Graça e Nela fique presa a nossa fé, alicerçada a nossa esperança, ativa a nossa caridade. É o movimento pelo qual o santuário da alma se edifica como memorial de que a todo o nosso inclinar perante Deus precede o inclinar Dele sobre nós. E é recordar-Lhe que ao nosso ajoelhar perante Ele antecedeu já o nosso olhar. Por isso, o nosso coração é capaz de o reconhecer como Rei amorosíssimo, habitando como morador na centelha da nossa alma e não como anónimo viajante. Subir ao cimo do Monte Santuário do Rei para descer à profundeza do nosso interior e aí fazer a experiência pascal da vida. Subimos como peregrinos, porque o “Amor, cá na terra é peregrino”, nas palavras de Frei Agostinho da Cruz (1918: 213), buscando o essencial. Descemos ao mais interior de nós mesmos trespassando o Self superficial, numa dinâmica de projeção/introjeção, ampliando e fortalecendo os limites do espaço ético, proporcionando a flexibilidade necessária para o ver para além do horizonte egoico. Nesta aniquilação assumida, nós descobrimos que, ao cobrir-nos o véu do Amor de Deus, o que há de mais verdadeiro em nós se desvela. O nosso coração peregrino ganha a identidade do Homem Novo, revestido de caridade.

Encontro de coração a coração

Na verdade, nenhum santuário nasce para morrer chão estático no seu orto, mas para ser terra fértil em constante gestação de vida em busca de santidade. Chão de paz, onde sopra a brisa suave do amor, qual “movimento vital do coração”, no dizer de Amador Arrais (1974: 78), trazendo a boa nova ao coração de cada um de nós de que somos capazes de transportar este mesmo Amor para lugares distantes e perto, e de o realizar; os lugares onde cada um de nós vive e é chamado a ser santo: no interior de nós mesmos, em casa, no trabalho, com o próximo.

Descalçar as sandálias da alma no Santuário do Cristo Rei é sempre momento de repouso do nosso coração no amor infinito e indizível de Deus, que é “a saúde da alma”, na expressão de S. João da Cruz (CB 11, 11). É ensejo de ser barro nas mãos do Oleiro (Jr 18, 6); alma menina dos olhos de Deus na expressão do salmista (Sl 17, 8); morada do Coração do Noivo; tálamo pronto para a Sua “Câmara nupcial”, nas palavras de Isabel da Trindade (UR 17). Só assim a alma entenderá a verdadeira doença do amor imperfeito que nela habita, a doença de amor que “jamais se cura senão com a presença e a figura” (CB 11, 12).

Para o Coração Rei, nenhuma alma vem de longe, nenhuma Lhe é distante, nenhuma Lhe é desconhecida. Somos peregrinos, vagabundos inócuos, até chegarmos à terra-recolhimento que nos retira desses países semotos de nós mesmos e de Deus e nos conduz à terra fértil geradora de um coração novo, aos prados verdejantes do amor, onde a alma habita, repleta de vida em abundância.

 

Consultas efetuadas

FREI AGOSTINHO DA CRUZ, Obras de Frei Agostinho da Cruz, Soneto LXVIII, Edição França Amado, 1918; FREI AMADOR ARRAIS, Diálogos, Porto, Edição Lello & Irmão, 1974; FREI TOMÉ DE JESUS, Trabalhos de Jesus, Tomo Primeiro, Lisboa, A.J. Fernandes Lopes, 1865; ISABEL DA TRINDADE, Obras completas, Marco de Canaveses, Edições Carmelo, 2008; SÃO JOÃO DA CRUZ, Obras completas, Marco de Canaveses, Edições Carmelo, 2005.

 

* Eugénia Abrantes Magalhães é diretora do Instituto de Estudos Avançados em Catolicismo e Globalização (IEAC-GO). Licenciada em Teologia e em Ciências Psicológicas. Realizou o Mestrado Integrado em Psicologia, área de especialização em Psicologia Clínica. Doutorada em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Quinta, 16 de Julho de 2020