PAI COM CORAGEM CRIATIVA

PAI COM CORAGEM CRIATIVA

«O amor de Deus faz os homens tão altos que, estando na terra, andam tratando no céu.»
Frei Heitor Pinto, IVC, III, p. 235.

 

O que define, na verdade, uma pessoa?

Esta é tantas vezes a pergunta que fazemos, sobretudo quando nos vem à memória o nome de alguém mais ou menos conhecido. Todos desenvolvemos, naturalmente, um sistema de sínteses integradoras, facilitador quer de relações, quer de conhecimento e de compreensão dos outros, do meio e do mundo que integramos. Trata-se de um sistema de sínteses genuíno, livre, único; um sistema acoplador da própria experiência pessoal de vida, da fé e da cultura na qual nos integramos. Somos genuinamente seres com; somos, evidentemente, seres de experiência.

O que define José, o «humilde carpinteiro» (cf. Mt 13,55), «desposado com Maria» (cf. Mt 1,18), pai de Jesus (Mt 3,22; Jo1,45)? –  atrevemo-nos nós a perguntar, nesta natural elaboração de sínteses. A pergunta pode até ser simples, a resposta, ou melhor, as respostas não deixam de suscitar alguma surpresa, se tivermos em conta que nos estamos a referir a uma figura tão parcamente falada nos Evangelhos (treze vezes, apenas).

A História, não apenas cristã, encheu a figura de José com inúmeros atributos, que qualificam a sua função de pai putativo de Jesus, aquele que assume, no contexto dos três evangelistas (Mt, Lc e Jo), a função de patriarca, portanto, protetor e representante da família. Todos temos presente referenciais atribuídos a José como: «homem de serviço»; «homem justo»; «homem do silêncio»; «homem cuidador e protetor dos miseráveis, necessitados, exilados, aflitos, «homem do sim»; «homem trabalhador»; «Guardião da Igreja»; «padroeiro universal da Igreja», etc. O nosso místico Padre Manuel Bernardes, em Luz e Calor, no Solilóquio XXIII, que intitula de «Cântico das excelências do Esposo Virgem da Virgem Mãe», nomeia-o «Ecónomo do Eterno Pai»; «Aio do Eterno Filho»; «digníssimo substituto do Espirito Santo»; «pai putativo de Cristo» (LC II, 363-365), o «primeiro Santo canonizado por Justo no Evangelho» (op.cit., 364). E a Carta Apostólica «Patris Corde», do Papa Francisco define S. José como «Pai amado»; «Pai na ternura»; «Pai na obediência»; «Pai no acolhimento»; «Pai trabalhador»; «Pai na sombra»; e, curiosamente «Pai com coragem criativa»

Mas, perguntamos nós, querendo ir mais fundo, o que na realidade define José? Um conjunto de atributos? Um manancial de ações notáveis? Um posto? Um título? De que matéria é feita a síntese do ser pessoa? S. José é, na verdade, um dos modelos nobres de resposta a todas estas questões. Ele surge, na história da ação salvífica de Deus, como testemunho de que o que define a pessoa não é, de modo algum, o protagonismo, o poder ou a dimensão de um curriculum vitae, mas a essência de que é feito o dom da vida e os carismas recebidos de Deus; falamos, pois, da essência do amor incondicional de José no acolhimento da vida dada por Deus e na aceitação íntima da vontade de Deus, no seu próprio mistério do projeto de salvação para com o seu povo. Não será de todo extrapolar, a partir do pouco que sabemos do carpinteiro de Nazaré, que o seu amor incondicional a Deus, mesmo na inquietação e na dúvida, no medo e na determinação, inspirou, de facto, a sua dimensão criativa. Na verdade, toda a dimensão criativa tem um nome, um objetivo, uma finalidade; ela não nasce de um vazio sem sentido ou do anonimato. Efetivamente, como cristãos, sabemos o quanto é surpreendente a força criativa que brota da fé, da esperança e da caridade! A criatividade, revestida de amor, é o rosto visível da atitude teologal em ação; o lado humano conspícuo da cooperação nos desígnios absolutos de Deus. S. José é, neste referencial, modelo inquestionável. Ele surge, na ação salvífica de Deus, como presença humana inundada do seu amor, simultaneamente, presença que se revigora constantemente nesse mesmo amor. No fiat de José ao plano salvífico de Deus, a sua criatividade ajusta-se, de forma sensível, a esse mesmo plano. Não se trata apenas daquela que é, naturalmente, exigida na sua profissão como carpinteiro (cf. Mt 13,55), mas, e sobretudo, daquela que se evidencia na sua vocação e missão, no contexto da história da salvação; uma criatividade revestida de justiça e bondade, quando evitou a todo o custo difamar Maria, optando por deixá-la secretamente (Mt 2,19); uma criatividade revestida de atenção e escuta à vontade divina e de humildade, quando fez o que o anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu Maria por sua esposa (Mt 2,24); uma criatividade revestida de cumprimento da Lei do Senhor (cf. Lc 2,22.27.39); uma criatividade revestida de cuidado, proteção, coragem e de adaptação a novas situações, mesmo as mais inesperadas, assumindo riscos exigentes, quando, juntamente com a sua família, tiveram de fugir para o Egito (Mt 2,13-15), quando tiveram de regressar de novo (Mt 3,19-23); uma criatividade que se forma do amor incondicional, na imensidão do Mistério que é Deus e toda a sua ação.

Em síntese, o que define S. José diz-se, acima de tudo, na essência do seu testemunho de vida. Ele é:

  • coragem criativa plena de amor, que vive do silêncio interior prévio a qualquer ação. Só a criatividade que vive do silêncio pode escutar a voz de Deus; só aquela que brota do silêncio de vida é capaz de contemplar verdadeiramente o acontecer dos dias;
  • coragem criativa plena de amor, que se forma de uma pureza de coração. Só a criatividade que dela nasce pode ver e agir para além da imediatez e dos julgamentos precipitados; como pode elevar o próximo no dom que ele é; como pode deixá-lo ser livre; como pode, ainda, conhecer a ilimitabilidade do amor;
  • coragem criativa plena de amor, que é revelação de concretude de ser, que é muito mais do que um sonho ou utopia. Só a criatividade que emana de uma forma autêntica de ser e de viver pode ambicionar chegar à felicidade e perceber de que lado da história devemos permanecer;
  • coragem criativa plena de amor, que é o amor em ação e em especial o amor ao Pai. Só o amor dita leis à criatividade, pois, fora dele, a criatividade é pura esterilidade; ele arrasta a criatividade para os campos da esperança; só ele transporta a criatividade aos mistérios da vida e engendra o voo da imaginação.

Nesta sua forma de ser e viver criativa, nutrida de silêncio, de amor e de autenticidade, José centraliza-nos no autor da história salvífica: o Pai eterno; centraliza-nos no amor ao próximo, mesmo na adversidade. Por seu turno, Deus, na sua ação salvífica, eleva José como homem, revestindo-o da sua Graça, confiando-lhe a missão nobre de pai putativo e protetor da Sagrada Família.

A criatividade de José tem a força do seu «sim» ao Pai eterno; o «sim criativo» que não desiste, não divide, não destrói, não impossibilita, apenas confia, cumpre, une Terra e Céu. A criatividade de José tem o nome do Amor Maior: Deus, o amor que tudo cumpre e que renova todas as coisas! (1 Jo 4,8.16)

 

 

Referências Bibliográficas: 
BERNARDES, Padre Manuel, Luz e Calor, II, Porto: Edição Lello & Irmão, 1991; FRANCISCO, Papa, Carta Apostólica Patris Corde. (Por ocasião do 150º aniversário da declaração de São José como Padroeiro Universal da Igreja), in http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco-lettera-ap_20201208_patris-corde.html, acedido a 15 de fevereiro de 2021; PINTO, Frei Heitor, Imagem da Vida Cristã, Lisboa: Edição Livraria Sá da Costa, Vol. III, 1940.

 

Eugénia Abrantes Magalhães

 
Eugénia Abrantes Magalhães é diretora do Instituto de Estudos Avançados em Catolicismo e Globalização (IEAC-GO). Licenciada em Teologia e em Ciências Psicológicas. Realizou o Mestrado Integrado em Psicologia, área de especialização em Psicologia Clínica. Doutorada em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Quarta, 30 de Junho de 2021