Há cem anos, o Papa Pio XI instituiu a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, através da encíclica Quas Primas, publicada em 1925. A sociedade da época encontrava-se num contexto de profundas transformações e crises, marcado pelo crescente secularismo e pela ascensão de ideologias totalitárias, como o comunismo e o fascismo
Estes acontecimentos históricos geraram, gradualmente, uma tendência para questionar a presença da religião na vida pública, relegando-a para a esfera privada. O comunismo na Rússia Soviética e o fascismo em Itália ganhavam força e estes regimes procuravam exercer um controlo absoluto sobre a vida das pessoas, chegando mesmo a reprimir a Igreja. A situação agravou-se ainda mais no contexto do pós-guerra europeu, que criou um ambiente de instabilidade social, política e económica.
Em muitos locais, a separação entre o Estado e a Igreja gerava conflitos. Os tempos sombrios e os céus carregados acentuavam esta divisão entre o reino dos homens e o reino de Cristo.
Esta inquietação continua actual. Um século depois, a Solenidade de Cristo Rei mantém a mesma força, não porque o mundo não tenha mudado ou deixado de apresentar novos desafios, mas porque, apesar das transformações históricas, a sede e a inquietação do coração humano permanecem inalteradas.
Quem governa, de facto, o nosso coração? Quem nos orienta e ajuda a discernir nas escolhas que fazemos? Que voz escutamos e à qual aderimos como autoridade última? As respostas a estas perguntas fazem parte do caminho que liga a sede da alma humana ao desejo de se submeter ao senhorio e ao Reino de Cristo: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre” (Jo 7, 37-38).
Celebrar Cristo Rei não é apenas recordar um acontecimento histórico ou um rito litúrgico do passado, mas sim proclamar hoje e agora o Maranatha: “Vem, Senhor Jesus”. É reconhecer o Cristo que sacia a nossa sede e reacende a nossa esperança. A sua soberania não oprime; as suas palavras, os seus silêncios e os seus milagres alimentam a nossa fé. Os seus gestos de amor e misericórdia, sobretudo para com os mais pobres, os doentes e os marginalizados pela indiferença e pelo abandono da sociedade, mostram-nos o caminho da caridade.
Cristo reina a partir do trono da cruz e do perdão, não impondo o seu reinado pela força, mas conquistando com amor e serviço. Não governa nem atrai seguidores pela espada, pelos bens, pelas vaidades, pelos títulos, pelas posições ou pelo estatuto, mas pela graça que converte e transforma os corações — corações que não ambicionam conquistas materiais, mas sim vidas verdadeiramente renovadas pela fé. Um reinado que começa no interior, no coração de quem crê.
Um reinado que começa de dentro
A festa de Cristo Rei não celebra apenas a autoridade sobre toda a Criação, mas um reinado que nasce da fé e da entrega de cada pessoa.
Deus está à porta e bate. Não invade, mas espera que Lhe abramos o coração. Propõe-se, suavemente, a ser o Senhor da nossa vida (cf. Ap 3, 20). Devemos, pois, fazer-nos a seguinte pergunta: Quem reina em mim? Reinam as minhas paixões? Os meus medos? A necessidade de reconhecimento? A opinião dos outros? Ou será Cristo quem reina, cuja coroa é de espinhos e cujo cetro é a sua infinita misericórdia?
A Solenidade de Cristo Rei leva-nos a reconhecer que o primeiro lugar onde o Reino deseja florescer é a nossa alma. Antes de transformar as estruturas, Cristo deseja transformar as pessoas, renovando-lhes o coração e alimentando o seu desejo profundo de paz.
Um Rei que julga com amor
No Evangelho desta solenidade, Jesus oferece-nos um ensinamento decisivo sobre o juízo final (Mt 25, 31-46). A Escritura descreve um tribunal exigente, mas com um critério claro de vida: o amor concreto. Cristo reina e identifica-Se com os pobres, os famintos, os estrangeiros, os doentes e os encarcerados. O Rei do Universo não permanece distante, fixado na luz da sua majestade; desce em favor dos mais desfavorecidos, iluminando as sombras das fragilidades humanas.
Ao celebrarmos Cristo Rei nesta solenidade centenária, somos chamados a renovar o nosso olhar e a ver a vida através da perspetiva do Rei. Cristo ensina-nos a amar incondicionalmente, com compaixão e reconhecendo a dignidade e o potencial de cada pessoa. Ele ensina-nos a ir além das aparências e das falhas momentâneas, acreditando no que cada ser humano pode tornar-se. Em vez de ver um pecador, vê um discípulo fiel; em vez de ver uma pecadora caída, vê a primeira pessoa que anunciaria a sua Ressurreição.
Jesus não promete a ausência de cruz, mas garante que o caminho com Ele é uma fonte de paz e descanso, pois é sustentado pelo amor e pela humildade. “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas; pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11, 29-30). Por isso, quem serve a Cristo não se cansa; o Seu coração concede descanso à alma dos fiéis.
Cem anos passados, e ainda precisamos deste Rei
A sociedade contemporânea comete constantemente o pecado da idolatria. Atribui o poder de Deus a situações, pessoas e contextos em que Ele não está presente, como o consumo, o materialismo, as ideologias e os prazeres momentâneos.
é necessário celebrar a festa de Cristo Rei como anúncio da verdadeira liberdade que se encontra no governo de Cristo. Ele tem autoridade e poder, mas não os exerce como um tirano, mas sim como um Pai amoroso. Não governa como um rei distante, mas como Aquele que deu a vida para salvar todos, inclusive os mais perdidos: “Hoje entrou a salvação nesta casa, porque também este é filho de Abraão. Pois o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 9-10).
Num mundo cansado, desnorteado, fragmentado e polarizado, continua a ser urgente um Rei cuja autoridade consiste no amor. A realeza de Cristo não só está próxima como está no meio de nós: “O Reino de Deus não vem de forma visível, nem poderão dizer: “Ei-lo aqui” ou “Ei-lo ali”, pois o Reino de Deus está entre vós” (Lc 17, 20-21). O Reino não é abstrato nem meramente simbólico, mas sim salvador.
Este centenário convida-nos a recuperar o cristocentrismo, colocando a presença viva, real e ressuscitada de Cristo no centro das paróquias, das comunidades, das famílias e, sobretudo, de todas as decisões da vida quotidiana dos fiéis. Ao colocarmos a Sua Palavra acima de todas as outras vozes, o Evangelho deixa de ser apenas um adorno devocional para se tornar um guia repleto de luz e esperança.
O nome e o poder de “Rei” que transforma os corações
“É manifesto que o nome e o poder de “Rei”, no sentido próprio da palavra, competem a Cristo na sua humanidade, porque só de Cristo, enquanto homem, se pode dizer que do Pai recebeu “poder, honra e realeza” (Dan 7, 13-14)”, Pio XI, Quas Primas, 8 (1925).
Se Cristo reinar em nós, o medo dará lugar à esperança e a nossa vida transformará-se através da fidelidade no quotidiano. Com paciência e abertura, o coração é conquistado pelo amor que o transforma e cria espaço para o Rei entrar. Ao entrar, o seu poder, a sua honra e a sua realeza atuam em nós e assumem o comando da nossa história.
O orgulho dá lugar ao serviço. A ansiedade dá lugar à confiança. A autopreservação abre-se ao dom. A crítica incessante transforma-se em compreensão. O individualismo descansa na comunhão.
O cristão que acolhe Cristo como Rei torna-se instrumento de paz, reconciliação e perdão. Um servo que escuta e acolhe com a humildade do Rei, torna-se presença amorosa do Reino de Cristo no mundo.
O Reino de Cristo como realidade presente e futura
O Reino de Cristo é futuro, mas também está presente. A Igreja aguarda a vinda gloriosa de Cristo, quando Ele finalmente será tudo em todos. No entanto, sabemos que, pela Sua morte e Ressurreição, Ele já reina nos corações daqueles que O acolhem com fé.
“Cristo é, por fim, Rei dos corações – pela supereminente caridade do seu conhecimento e pela mansidão e benignidade que atraem os ânimos. Nunca sucedeu, nem sucederá, que alguém seja amado pela universalidade dos povos como Jesus Cristo” – Pio XI, Quas Primas, 7 (1925).
Entre o “já” e o “ainda não” vive a Igreja. Somos convidados a colaborar no Reino de Cristo, sendo testemunhas fiéis que disseminam a sua palavra. A missão da Igreja, tal como há 100 anos, continua a ser a de anunciar o Rei que salva, cura, reúne os dispersos, governa com amor, reacende a esperança e abraça aqueles que o mundo ignora.
O centenário desta solenidade é, portanto, também um centenário de missão.
Uma missão pessoal
O Reino já começou em si? Cristo reina em todos os aspetos da sua vida? Ou existem áreas em que ainda não entregou o controlo à sua realeza? Há medos que o impedem de confiar? Há apegos que o impedem de dar os passos necessários?
Cristo não impõe o seu Reino; Ele espera. Espera que Lhe abramos o coração para entrar e saciar a sede da nossa alma.
O Reino manifesta-se nos corações que dizem: “Senhor, reina em mim”. Começa quando perdoamos incondicionalmente aqueles que nos feriram; quando somos autênticos e não nos deixamos levar pelas aparências; quando servimos sem procurar glória pessoal, mas dando toda a glória a Ele, que é e sempre será o nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo.
Que o Reino de Cristo cresça e reine em todos os corações. Neste centenário, proclamemos juntos, com fé:
“Ele Reina!”
Ámen.




Uma resposta
Ámen!
Estive no congresso via zoom e venho deixar os meus agradecimentos por tão importante evento!
Rezamos pelo triunfo do Sagrado Coração de Jesus e pela vinda do Reino!
Aqui estou, Senhor!