Na sociedade moderna, o feio, o grotesco e o sombrio conquistaram cada vez mais espaço na arte, na cultura e na vida humana. A relativização do belo e a desconstrução estética desafiam alguns valores éticos fundamentais da herança filosófica de São Tomás de Aquino: bonum, verum, pulchrum, unum e aliquid — o bom, o verdadeiro, o belo, o uno (indiviso) e o «que torna um ser diferente do outro».
Entender a beleza é um grande desafio. O feio, hoje amplamente divulgado nas salas de cinema e nas artes, evoca monstros, relativiza o terror e suaviza o medo que deveríamos sentir perante imagens degradadas. Brinquedos de monstros são realidade para as crianças desde cedo; os fãs de Lady Gaga autodenominam-se little monsters. Não há como negar: o obscuro, o feio, está na moda na cultura contemporânea.
Ao que parece, para os autores de tais produtos e obras, não se trata apenas de um acto de protesto contra a sociedade, mas de criar um novo elemento de identificação com a modernidade, tornando dócil e simpática a presença do feio e dos monstros no cenário cultural.
Alguns filósofos contemporâneos, como José Gil, acreditam que o corpo passa hoje por transformações significativas: a fronteira entre o natural e o artificial dilui-se, perdendo-se a noção do que é humano sem nos assustarmos com o contraditório. Assim, desfaz-se a linha que separa o belo do feio.
Mas a beleza continua ainda muito estimada…
Sim. Do mesmo modo que o feio encontrou espaço na cultura actual, a procura pela perfeição e valorização do corpo permanece em alta. Na cultura da selfie, do Photoshop e das redes sociais, percebe-se como as pessoas ainda desejam apresentar uma boa imagem, uma estética limpa, escondendo marcas e imperfeições.
Esta crise e luta pelo verdadeiro ideal de beleza estiveram sempre presentes na história. Contudo, não se resolvem estas questões com um olhar superficial, mas sim com uma visão que deseje reencontrar o sentido profundo da beleza, intimamente ligado à infinita riqueza de Deus, que de algum modo se reflecte na obra do homem (cf. CIC 2500).
Este artigo propõe compreender como o nosso olhar sobre o corpo e a beleza se foi transformando ao longo da história, por que nos fascinamos pelo obscuro e o que devemos fazer para curar os olhos e reencontrar a verdadeira beleza cristã.
Corpo e beleza: uma história em tensão
A idealização do corpo: a Grécia antiga
Na Grécia Antiga, o corpo humano era exaltado como símbolo da perfeição e da harmonia. Esculturas como o Discóbolo ou o Doryphoros de Policleto representam proporções matemáticas e um equilíbrio quase divino. O corpo era cultuado como obra-prima, a ponto de ser idolatrado.
O corpo em silêncio: o cristianismo
Com a chegada do cristianismo, o corpo deixou de ser idolatrado e passou a ser compreendido na sua relação com a alma e com Deus. Nunca perdeu valor, mas foi integrado na totalidade da pessoa. Em certos momentos, porém, houve silêncio sobre a beleza do corpo, como se fosse perigosa demais e pudesse ser ocasião de queda e de pecado.
O desprezo e a mortificação: a Idade Média
Na Idade Média, em alguns ambientes mais rigorosos, desprezou-se o culto da beleza física e divulgou-se a mortificação corporal como caminho de santidade. O corpo, muitas vezes associado às tentações da carne, foi submetido a jejuns severos e disciplinas radicais, com o intuito de manter o espírito livre das vaidades mundanas.
O novo corpo: a era moderna
Após a Idade Média, com o Renascimento, a balança mudou. O corpo foi redescoberto, não apenas como reflexo do Criador, mas como centro do universo. Marcou-se assim a passagem de uma concepção teocêntrica para um ideal antropocêntrico. O corpo tornou-se medida de todas as coisas: da beleza, do prazer e do poder.
A crise do corpo: os nossos dias
Hoje carregamos toda esta herança paradoxal. Nunca se falou tanto de estética, moda, fitness, cirurgias, cultura light. As pessoas procuram cada vez mais o autocuidado: ginásios, personal trainers, caminhadas, corridas. Contudo, nunca houve tantas pessoas infelizes e insatisfeitas com o próprio corpo. A obsessão pela imagem convive com a despersonalização e até com o desprezo por aquilo que não é «perfeito». Da idealização grega ao culto actual, percorremos séculos em que o corpo foi de divinizado a descartado.
O fascínio pelo obscuro: sintoma de sede de sentido
Este cenário de crise abre espaço a um vazio existencial. Ao perderem a capacidade de encontrar propósito e sentido, muitos deixam-se atrair pelo sombrio. Filmes de monstros, bruxas e zombies revelam o desejo de espelhar medos internos ou de enfrentar as sombras da alma. Perguntas ecoam: o que é o bem? o que é o mal? que fazer com este sentimento? qual será o meu fim?
Este itinerário tem um risco: ao olhar para o feio e para o obscuro, é preciso que tal experiência nos impulsione a desejar a luz. Ao encontrar o mal, devemos recordar que a última palavra pertence à beleza.
A verdadeira beleza não foge do sofrimento, das marcas, das feridas, do cansaço. A beleza grava-se no corpo, como em Cristo crucificado, que Se entregou por amor redentor para que a luz da Sua ressurreição atravessasse as trevas que nos atingem.
O belo cristão: transparência de Deus
A beleza, segundo Cristo e a óptica cristã, não se identifica com a estética superficial da cultura actual. Não que não seja importante amar-se, cuidar-se e valorizar o corpo. Mas a estética que escraviza o corpo, reduzindo-o a mero ornamento ou objecto de passarela, não reflecte o pensamento cristão.
Santo Agostinho exclamava: «Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova!» Para quem tem fé, a beleza é experiência e encontro, não simples produto de consumo.
O cristão é belo quando é humilde e não se deixa dominar pela vaidade. A beleza manifesta-se na arte, na música sacra, nos gestos simples: uma mesa posta, um jardim cuidado, uma flor oferecida. As imperfeições e a dor não anulam a felicidade, pois o belo tem um sumo bem que dá sentido a todas as coisas.
5 passos para curar o olhar e redescobrir a beleza
Como exercitar o olhar para adquirir a experiência do belo em tempos de distorção de imagens? Seguem cinco passos concretos:
1. Jejum de 72 horas de conteúdos sombrios
Permita-se avaliar com mais critério: o que os seus olhos contemplam, o que o seu corpo procura na arte, no cinema, na música, nas notícias, eleva de facto a sua alma? Traz-lhe felicidade? Se não, ofereça ao coração três dias de desintoxicação. O silêncio abrirá espaço para que o verdadeiro bem entre.
2. Curadoria positiva: uma obra por dia
Escolha diariamente uma boa obra para contemplar: um poema, uma canção, uma imagem. Aquilo que traz paz interior e serenidade à alma fará bem também ao corpo.
3. Liturgia do olhar
Reserve cinco minutos por dia para contemplar uma imagem sacra ou uma paisagem natural. A contemplação do belo fala mais do que muitas palavras e harmoniza o nosso ser.
4. Comunidade da beleza
Não procure compreender a beleza sozinho. Ninguém é belo sozinho. A solidão mata. A estética individualista e comercializada de hoje gera inúmeras doenças emocionais. O vínculo e a pertença são fundamentais para a sanidade do corpo e da alma.
5. Serviço: transformar o olhar em gesto
A beleza é também um acto de serviço. Não é apenas admiração ou ego, mas missão: tornar o mundo e as pessoas melhores. Criamos beleza quando cuidamos de uma planta, arrumamos um espaço, oferecemos flores, preparamos uma refeição simples com amor. Quem ama muito torna-se mais belo: «À medida que o amor cresce em ti, a beleza também cresce. Pois o amor é a beleza da alma» (Santo Agostinho).
Exercite a beleza
O gosto actual pelo feio revela, no fundo, a saudade da beleza que salva. O mundo corre atrás de sombras e de obscuridade porque está vazio e procura um horizonte de luz.
Como cristãos, somos chamados a recordar que a verdadeira arte e a verdadeira beleza nascem de Deus e a Ele nos conduzem (CIC 2500; 2503).
Redescobrir a beleza é um caminho espiritual. Educar os olhos para a contemplação do belo, no corpo, na arte, na vida, é reencontrar o verdadeiro sentido da existência.
O desafio está lançado: exercite a beleza. Faça jejum do feio, contemple o belo, partilhe-o e transforme-o em gestos concretos de amor. Só assim o fascínio pelos monstros perderá espaço para a admiração do rosto mais belo de todos: Cristo, a Beleza encarnada.